O aniversário de Mato Grosso do Sul, celebrado em 11 de outubro, remete a um capítulo decisivo do país: a criação de um novo Estado a partir do desmembramento do antigo Mato Grosso. A medida foi sancionada pelo presidente Ernesto Geisel por meio da Lei Complementar nº 31, de 11 de outubro de 1977, estabelecendo Campo Grande como capital. A escolha do nome do Estado — tema aparentemente burocrático — transformou-se em batalha simbólica e política que tomou rádios, jornais e gabinetes, até consagrar a denominação “Mato Grosso do Sul”.
O contexto da divisão
A separação, maturada desde o século XIX e retomada em diferentes momentos da história republicana, ganhou tração durante o regime militar, quando o governo federal defendia ajustes administrativos para ampliar presença do Estado na fronteira e acelerar a integração regional. No dia 3 de maio de 1977, Geisel anunciou o desmembramento. Em 24 de agosto, o projeto chegou ao Congresso; em 11 de outubro, virou lei.
Pelo texto legal, o novo Estado ocuparia a porção meridional do antigo Mato Grosso, com Campo Grande estabelecida, de forma “lacônica e contundente”, como capital. A organização dos Poderes — Legislativo, Executivo e Judiciário — foi detalhada na própria lei, prevendo prazos para instalação da Assembleia Constituinte estadual, composição do Tribunal de Justiça, regras eleitorais e repartição de patrimônio e servidores.
A disputa pelo nome: “Campo Grande” ou “Mato Grosso do Sul”?
Se a separação territorial encontrou respaldo político, o batismo do Estado incendiou o debate público. A proposta inicial de chamá-lo “Estado de Campo Grande” incomodou lideranças e a população do interior, sobretudo em Dourados, Corumbá e outras cidades. O argumento central: dar ao Estado o nome da capital soava exclusivista, ignorando a diversidade geográfica, histórica e cultural da porção sul do antigo Mato Grosso.
Nas páginas do jornal O Progresso, em Dourados, o professor Wilson Valentim Biasotto ponderou alternativas: “Estado de Campo Grande”, “Estado de Maracaju” e, com menos apoio, “Entre-Rios”. Esta última caiu pela própria história: apesar de o território ser uma mesopotâmia, “Entre-Rios” já havia sido tentado sem êxito (a futura Rio Brilhante). “Maracaju” tampouco vingou — repetiria um relevo e o nome de um município, sem traduzir a totalidade do Estado.
A seriema no centro da polêmica
O debate ganhou cor popular quando o jornalista Valfrido Silva, inspirado por conversa com Biasotto, publicou o artigo “Pra quem fica a Seriema?”. A ave, símbolo regional e imortalizada na canção sertaneja “Ó seriema de Mato Grosso…”, virou metáfora do pertencimento. Se o Estado passasse a se chamar Campo Grande, a quem pertenceria a seriema cantada — ao Norte (o antigo Mato Grosso) ou ao novo Estado? Rebatizar a canção para “Seriema de Campo Grande” soava absurdo cultural; remeter o símbolo ao Norte era um despropósito. A crônica sintetizou o sentimento: o nome precisava representar todo o território e sua memória coletiva.
Predomínio da história e da representatividade
A sociedade civil, a imprensa regional e articulações políticas convergiram para a fórmula que conciliava passado e futuro: “Mato Grosso do Sul”. O nome mantinha elo histórico com o Mato Grosso, destacava a identidade meridional e evitava bairrismo. O Congresso alterou o projeto, e a lei de criação foi sancionada já com a denominação definitiva. Campo Grande permaneceu capital; o Estado nasceu plural em nome e alcance.
Por que “Mato Grosso do Sul” venceu?
– Representa todas as regiões do novo Estado, não apenas a capital;
– Preserva a memória comum com o antigo Mato Grosso;
– Reduz o risco de assimetria simbólica entre capital e interior;
– Pacifica a disputa identitária com uma solução histórica e inclusiva.
O que diz a Lei Complementar nº 31/77 (em linhas gerais)
– Cria o Estado de Mato Grosso do Sul e fixa Campo Grande como capital;
– Delimita a área desmembrada ao sul, com descrição pormenorizada de rios e marcos;
– Organiza Poderes: prazos para a Assembleia Constituinte (instalação em 1979), composição do TJ-MS e do TRE;
– Reparte patrimônio, servidores, orçamento e dívidas entre MT e MS;
– Define regras eleitorais transitórias e programas federais de desenvolvimento regional para a transição.
Linha do tempo essencial
- Século XIX – Primeiras cogitações de divisão do Mato Grosso.
- 3 mai. 1977 – Geisel anuncia o desmembramento.
- 24 ago. 1977 – Projeto é enviado ao Congresso.
- 11 out. 1977 – Lei Complementar nº 31 cria Mato Grosso do Sul e define Campo Grande como capital.
- 1º jan. 1979 – Prazos de instalação dos Poderes estaduais entram em vigor.
Legado e referências
A narrativa da divisão e da disputa pelo nome consolidou uma identidade estadual plural, em que história, política e cultura caminharam juntas. Para quem deseja aprofundar, o livro “História da Fundação de Mato Grosso do Sul”, do jornalista Sérgio Cruz, percorre das primeiras cogitações à sanção da LC 31/77, oferecendo o pano de fundo completo da criação do Estado.
Em 48 anos, Mato Grosso do Sul firmou-se como ponte estratégica do Centro-Oeste, combinando agro, biodiversidade pantaneira, diversidade cultural e um projeto de sociedade que nasceu, desde o princípio, da exigência de representatividade — a mesma que fez da seriema um símbolo não de um município, mas de um povo inteiro.